Feridas que não se veem: dignidade esportiva e abuso nos clubes

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Foto: Reprodução

Jogadores de futebol, especialmente nas categorias de base, várias vezes enfrentam uma série de violências: verbal, psicológica, até sexual muitas vezes invisíveis para além dos gramados. O impacto disso vai muito além do resultado esportivo: prejudica saúde mental, rendimento e desenvolvimento humano. O racismo também existe até dentro das agremiações e segue sendo um problema muito sério no esporte

Relatórios recentes da Federação Internacional de Jogadores Profissionais de Futebol (FIFPro) destacam seguidamente que agressões por torcedores, pressão excessiva de dirigentes ou treinadores, e críticas contínuas têm consequências duradouras para quem está em formação.

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Um jovem que acusa o diretor da base de um grande clube paulista, o Santos, resumiu: “O abuso que eu sofri mexeu com minha cabeça”. O caso de Ruan Pétrick Aguiar de Carvalho está sob investigação pela polícia civil de São Paulo, e expõe como abusos emocionais ou de poder podem deixar marcas profundas.

POLÍTICAS E RESPOSTAS INSTITUCIONAIS NO BRASIL

Alguns clubes estão começando a responder institucionalmente a essas violências e ao ambiente emocional adverso. Segundo um levantamento recente, 25 clubes das Séries A e B foram consultados sobre o combate à violência contra a mulher, assédio e abuso no futebol masculino e feminino.

Dos 25, 14 responderam, e muitos declararam ter psicólogos no departamento de futebol, realizar dinâmicas de grupo ou tratar o tema em encontros individuais.

Por exemplo, o Atlético‑MG garantiu que “tem um departamento de psicologia e, além disso, o tema começou a ser tratado com maior ênfase no departamento de futebol visando conscientizar jogadores e funcionários”. Esse tipo de afirmação, embora não garanta eficácia automática, mostra uma mudança crescente de postura.

Entretanto, muitos clubes – especialmente os de menor porte ou das divisões inferiores – não dispõem de estrutura mínima (psicólogos, canais de denúncia, protocolos claros) para identificar, acolher e responder a casos de abuso ou agressão emocional.

CASOS ESPECÍFICOS

Além do caso de Ruan Pétrick no Santos, existem registros de outros episódios traumáticos tanto no Brasil quanto internacionalmente:

  • No Brasil, uma reportagem revelou esquemas de abuso sexual envolvendo olheiros e empresários que levavam crianças do Pará ao Sudeste. Os menores, sob a promessa de uma carreira, sofreram exploração física e emocional.
  • Também há o caso confirmado de um ex‑funcionário do Grêmio preso por abuso sexual de jovens nas categorias de base. Embora o vínculo institucional às vezes seja nebuloso, o impacto sobre as vítimas é concreto.
  • Em âmbito internacional, a FIFPro alerta para agressões físicas/verbalizadas por torcidas ou dentro dos clubes, e que tais comportamentos degradantes interferem no desempenho esportivo e na vida pessoal dos atletas.
  • “Não podemos continuar permitindo uma cultura na qual jogadores são vítimas de agressão normalizada e não verificada no seu ambiente de trabalho”, alerta Alexander Bielefeld, diretor de política global da FIFPro.

Vários jogadores têm reclamado de queda de rendimento, ansiedade, insônia, medo de errar. Fora do campo os efeitos são visíveis: isolamento, sintomas depressivos, dificuldade de concentração nos estudos ou vida pessoal. Redes sociais ampliam isso: comentários ofensivos, ameaças, humilhações são constantes e dificilmente reguladas.

OUTROS PAÍSES

Em países da Europa, América do Norte e Austrália, clubes e federações têm políticas mais estruturadas: departamentos de bem‑estar (welfare), psicólogos esportivos, serviços de mediação, canais anônimos de denúncia, proteção contra abuso sexual, e regulamentos claros. Alguns exemplos:

  • A FIFPro, mundialmente, pressiona para que os direitos do jogador sejam garantidos como direitos do trabalhador, incluindo ambiente seguro.
  • Federações de futebol de países escandinavos ou do Reino Unido possuem códigos de conduta obrigatórios nos clubes, com sanções severas tanto para abuso moral quanto físico.
  • Em comparação, no Brasil, embora existam leis gerais (por exemplo, punições por racismo ou assédio), faltam protocolos amplamente adotados nos clubes menores, fiscalização persistente e cultura de acolhimento.
QUEDA DE RENDIMENTO E SAÚDE MENTAL

A pressão emocional no futebol pode causar, entre outros feitos

  1. Ansiedade e depressão — jovens sujeitos a exigências excessivas ou humilhações constantes tendem a ter sintomas como baixa autoestima, insônia, pensamentos de desistir.
  2. Quebra de identidade esportiva — o atleta passa a associar falhas ou críticas ao seu valor pessoal, em vez de tratar como parte normal do esporte.
  3. Lesões psicossomáticas — estresse elevado pode aumentar o risco de lesões ou atrasar recuperação.
  4. Piora de desempenho em campo — por exemplo, hesitação em decisões, medo de errar, perda de confiança, o que impacta passe, finalização, tomada de decisão.

Ruan Pétrick comentou sobre os efeitos emocionais: “O abuso que eu sofri mexeu com minha cabeça”, indicando como traumas podem se manifestar em bloqueios mentais e desempenho inferior.

DESAFIOS PARA MUDANÇA

Para enfrentar esse cenário, algumas medidas parecem essenciais:

  • Implantar setores de saúde mental dentro dos clubes, com psicólogos esportivos e clínicos, para atender atletas de base e profissionais.
  • Estabelecer protocolos claros de denúncia e acolhimento, com garantias de anonimato e proteção contra possíveis retaliações.
  • Capacitar treinadores, preparadores físicos e equipe de apoio para identificarem sinais de abuso emocional ou psicológico, e para lidarem de modo empático e responsável.
  • Políticas regulatórias das federações e entidades como CBF, Conmebol, clubes internacionais, exigindo que clubes tenham diretrizes mínimas de bem‑estar institucional.

A Conmebol já lançou em agosto deste ano um sistema para detectar abuso online – racismo, discurso de ódio e ofensas nas redes – com sanções previstas como suspensão de conta, restrição de acesso a estádio e até denúncias às autoridades. Esse tipo de mecanismo auxilia no ambiente externo, mas não resolve por si só o ambiente interno dos clubes.

CONCLUSÃO

Violência, abuso e más condições emocionais nos clubes de futebol são feridas profundas, não visíveis nos placares, mas determinantes para o futuro dos jogadores. O crescimento de casos documentados mostra que a cultura de silêncio, humilhação ou pressão extrema não é inevitável: há modelos, há iniciativas, há denúncias.

Para proteger rendimento e saúde mental, é imprescindível que clubes reconheçam a responsabilidade institucional, que federações e entidades reguladoras atuem com fiscalização e que a sociedade como um todo valorize e exija a dignidade dos atletas.